Imagem capa - Parou o mundo por oito abraços por Wilson Domeneghetti Monticelli
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Parou o mundo por oito abraços


Foto produzida pela aluna Beatriz Ferrari



Olhos fechados. Vento no rosto. Sol da tarde. Um instante só seu para esquecer a realidade. Tranquilo e soberano momento que apenas os plenos da própria condição como seres viventes conseguem alcançar.

A história a seguir precisou tanto ser contada que gritou mais alto e atropelou as outras que estavam na frente da fila.

Tudo aconteceu por acaso. A ideia inicial era encontrar um homem que supera a vida a todo o instante, escrever um pequeno perfil sobre o personagem proposto, acompanhado de fotografias de sua casa, e de um dos locais onde ele alimenta pombos, uma área com arte grafite em frente à extinta Praça Roosevelt. Já estava tudo combinado.

Dirceu mora próximo ao Centro Velho de São Paulo. Maratonista, mais de setenta carnavais, pegava bicicletas emprestadas para participar de competições e levava o ouro para casa. Com as vitórias lotou a casa de medalhas, algumas que carrega consigo enquanto passeia pelas ruas alimentando pombos.

Mas nada dele aparecer em cena, apenas os companheiros de pena. Cada minuto sem a presença do entrevistado aumentava a agonia de não começar a pauta e o medo de voltar sem fotos era imenso. O tempo começou a esfriar aos poucos, o ânimo também.

O jeito era aproveitar a tarde para fazer fotografias espontâneas, das pessoas, da paisagem, das pombas para as quais o senhor desaparecido prometeu alimento. Apesar de que, até aquele instante, ficou a dúvida se estavam aguardando por ele também ou se já descansavam ao sol depois do lanche vespertino.

Mas ele não apareceu. No lugar da sensação de vitória em fazer as fotos, a agonia de não entregar a pauta, a frustração da falha, lágrimas.

E então, Janete Oliveira aconteceu. 54 anos, sorriso franco, tranqüilidade na voz, parou na calçada e começou a conversar conosco, curiosa com as fotos, empolgada em mostrar um pouco do que fotografa.

Retirou da bolsa uma Kodak compacta arranhada pelo uso. Nas fotos, palestras e workshops sobre fotografia e cinema. Apesar da modéstia dos cliques, pessoas importantes e situações interessantes estavam na memória da câmera.

Janete, uma desconhecida aos olhos das pautas diárias, mostrou-se detentora de experiências de vida cativantes e interessantes a qualquer fotógrafo. Ela já acompanhou apresentações em centros culturais em que fotógrafos renomados como Pedro Martinelli contaram um pouco de suas carreiras. Em outros momentos, presenciou discussões sobre a estética do cinema africano, lideradas por estudiosos de Oxford.

Fora do mercado de trabalho, buscou na ajuda social uma forma de se manter antenada e encontrou num ato simples, o jeito de transmitir suas palavras e carinho. Faz parte de organizações que ajudam a Favela Moinho, em São Paulo, onde as famílias aguardam sua chegada para fazer tranças e penteados nas crianças.

Ensinou naquela tarde que uma pessoa precisa dar oito abraços para ter um dia de energia plena. Terminada a afirmação, topamos a ideia do abraço. Sentimos aquela pequena senhora emanar um bem tão grande que tudo saiu uma grande terapia a céu aberto.

Perguntou se havia algum problema em clicar um retrato da lembrança daquele dia. Nos organizamos ao redor dela, que clicou três vezes e ficou bastante emocionada. Afinal, as pessoas dificilmente prestam atenção umas às outras quando andam na rua, muito menos se abraçam e trocam palavras afetuosas com estranhos.

Agora era a nossa vez, então começamos as fotografias da nossa personagem inusitada. Braços abertos, sorriso brilhando ao sol da tarde, cada clique era uma experiência nova, pois ela comentava sobre práticas de yoga, dança, enquanto subia na rampa onde aguardávamos o homem que cuida dos pombos. Assim como ele, ela subia pela rampa, o que causava um pouco de pânico, pois poderia cair na avenida.

 Conversávamos com Janete, como se estivéssemos ao mesmo tempo numa roda de amigos e numa meditação. A proposta era imaginar que naquele instante, ela não estava ali, que voava, ou era abraçada. O calor no grafite aquecia-lhe as costas, dando a tranqüilidade adequada para a imaginação fluir.

Cheia de vida e de sorrisos, mostrou uma calma naqueles minutos de conversa e cliques, que não só mudaram o clima da saída fotográfica, como mudaram nossos rostos, que verteram em lágrimas e sorrisos e abraços ternos. Seu olhar ainda escondia algo por trás daquele brilho de alegria, de vida.

Janete tem câncer, diagnosticado ano passado. Seu olhar pedia uma coisa que ninguém faria durante sua trajetória até o hospital Pérola Bayton durante a tarde da entrevista: reconhecimento e respeito. Devolvemos o olhar. Ela pedia atenção para que sua vida não caísse no esquecimento, para que o acaso não fosse por acaso.

Contou sobre uma proposta que ela começou ano passado  similar ao filme Antes de Partir, protagonizado por Morgan Freeman e Jack Nicholson. A história conta como um administrador de hospitais e um mecânico encontram formas incomuns de aproveitar os últimos instantes através de um projeto de filosofia: a lista “Antes de Partir”. Ela consiste em 100 coisas que se deseja fazer, das mais simples até as mais extravagantes. Por etiqueta, melhor não perguntar sobre todos os itens, fica na imaginação do leitor, o preenchimento ponto a ponto da lista criada por Janete.

Durante uma saída fotográfica a fins jornalísticos, ganhamos de presente uma aula sobre qualidade de vida, ajuda ao próximo e positivismo. Mesmo desempregada, Janete não deixa de correr atrás de algo para fazer.

Da sua lista de cem coisas a fazer antes de morrer, ainda faltam 62, e até o fim do dia já tinha dado quatro abraços para completar os oito de um dia pleno. Ainda falta muito a completar, mas a passagem dessa senhora em nossos caminhos nos deixou ao mesmo tempo felizes e reflexivos.

Precisava ir. 17:04 acusava o celular. Após mais de uma hora conversando, Janete perdeu a consulta no anestesista, o que aborreceria a maioria das pessoas, mas não a ela. Despediu-se com mais abraços, sinal de alguém que queria apenas atenção e que sua história fosse ouvida. Deixou um sentimento novo no ar.

Mas espere... não eram oito abraços para completar o dia? Faltaram quatro.